sábado, 6 de junho de 2020

Poema para André Kertesz

Meu corpo não é espelho
Não é esse espelho dos prazeres hedonistas
E dos sonhos de consumo capitalista
Não, nunca foi!
Meu corpo não é espelho 
Não pertence a esse patamar das linhas perfeitas
Das retas e curvas simétricas
Nele não há simetrias
É torto, cheio de estrias
Com buracos e secreções
É cheio de defeitos e vícios
Alguns naturais e outros adquiridos
Cada um com sua história de vida
Com toda a potência degenerativa que um corpo pode ter
Porque é sabido que corpo morre e apodrece
E se o corpo é apenas a caixa de nossa alma
Logo meu corpo não é espelho
Ele pode ser uma caixa
Mas não essas caixas perfeitas das lojas de grife
Que vem embrulhada em um papel brilhante e com um lacinho bonito
Que alma teria orgulho de uma caixa assim?
Talvez os consumistas, ansiosos por vender sua caixa
E colocá-la em eterna exposição, sempre com placa de vende-se
Mas essa caixa não me cabe
Talvez uma caixa amassada e machucada
Dessas que o conteúdo arromba as bordas porque não coube dentro da caixa
Que de tão torta e arrombada a gente tem que amarrar com um barbante velho pra não ver ela se desfazer
Mas nunca espelho, isso não!
Nem imagino como deva ser a perfeição
Nenhum erro, o sorriso perfeito, todos os dentes branquinhos no lugar
Nenhum cabelo branco, nenhuma natureza morta
E cheio de mentiras
Quem quer ser espelho esses tempos?
Qual a audácia me levaria a pensar que ser um reflexo de tempos sombrios é bom?
Que toda essa demasiada exibição faz bem?
Eu acho que é melhor ser caixa
Uma caixa velha e arrombada
E guardar essas dores, essas perspectivas frustradas e esses sonhos que não se realizam bem amarrados com  barbante velho
Antes que tudo se desfaça

Finestre su Arte, Cinema e Musica: Gli specchi deformanti di André ...

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Três dicas

Esse texto era pra ter saído na última sexta feira 13 em outro blog, mas desencontros aconteceram e acabou ficando na gaveta. Agora não mais, espero que curtam as dicas.


Vingança Diabólica (Ratman’s Notebooks), 1968 – Stephen Gilbert


Vingança Diabólica é um desses pequenos clássicos da literatura pop, uma novela em que a gente facilmente consegue ler em um dia dada a sua narrativa envolvente e sua linguagem descomplicada. O livro, que é escrito em forma de diário, nos mostra a relação do personagem principal (que não tem o nome identificado pelo autor) com a sua mãe, as pessoas de seu trabalho e com os ratos da casa. O livro narra a vida do personagem principal que vive com sua mãe em uma mansão antiga, ao descobrir uma ninhada de ratos na casa, o jovem passa domesticá-los e, conforme os ratos se tornam mais subservientes, o jovem começa a por em prática alguns desejos cruéis.

 A escrita em forma de diário nos lembra Werther de Goethe, a relação com a mãe nos remete a Norman Bates em Psicose e nos entramos tão profundamente na mente do personagem que a angustia toma conta do leitor. O livro virou filme em 1971 com a adaptação "Willard", no Brasil o título foi “Calafrio”. E em 2003 outra versão foi produzida tendo o ator Crispin Glover (O Pai do Martin Mcfly no primeiro filme da série) no papel principal. O livro foi lançado pela extinta editora Círculo do Livro e não está em catálogo, mas pode ser achado nos sebos virtuais e reais da vida.

Roque, o azarado, 1983 – Coke Luxe

Coke Luxe foi uma banda de rockabilly brasileira formada em São Paulo nos anos 80 por Eddy Teddy, um dos pioneiros do rockabilly no Brasil. No princípio dos anos 80 Rock brasileiro mais primitivo e underground teve um novo auge no Brasil por conta de bandas como Coke Luxe, Magazine do Kid Vinil e Kães Vadius. Alinhados ao que fazia o Stray Cats fora do país esse tipo de som dominou a música brasileira nessa década ao ponto da banda João Penca e Seus Miquinhos Amestrados terem tema em abertura de novela

E se a sexta feira 13 é sobe a má sorte ou a falta de sorte, nada mais azarado que o próprio Roque, personagem das músicas da Coke Luxe que tem seu dia de azar por simplesmente não conseguir tomar banho. Nas palavras do Próprio Eddy Teddy: “O Azarado é um trintão, pai de filhos, mora num subúrbio da periferia e naquele sábado ele deu um aplique na família e caiu pra farra. Ele tá por ai!”. Visceral, inocente, cru, feroz e altamente divertido, o mais genuíno rock brasileiro.

Vingança barata (They're Creeping Up On You), 1982 – Stephen King /George A. Romero

Creepshow - Arrepio do Medo foi lançado em 1982 reunindo dois grandes nomes do terror, Stephen King nos roteiros e George A. Romero na direção. O filme é construído no formato de pequenas histórias independentes que juntas formam o que seriam o Gibi Creepshow. São 4 histórias roteirizadas por King e dirigidas por Romero, todas excelentes. Mas pra essa sexta feira 13 destaco a última, Vingança barata.
Na trama um milionário arrogante chamado Upson Pratt vive isolado por conta de sua mania de limpeza e de sua total repulsa as baratas com quem ele vai ter que confrontar a sua fobia. Um roteiro simples e fantástico em que Stephen King aborda medos, fobias, paranoias e as consequências de tudo isso de uma maneira muito impactante. Romero consegue transpor pra tela toda a angústia do personagem e todo o seu transtorno obsessivo, sua rabugice e sua crise de maneira que só um gênio do Horror pode fazer.  Max von Sydow quase foi o intérprete de Vingança Barata, mas coube a E. G. Marshall fazer o papel principal e, na cena derradeira, não usou dublê. Simplesmente fantástico!





sexta-feira, 27 de março de 2020

Renato Russo 60 anos e uma infância feliz


“Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem”


1989, eu tinha 8 anos e morava em uma casa de madeira na então periferia da Lomas, número 1839 entre Duque de 25 de setembro no bairro do Marco. Por mais que hoje o Marco seja esse bairro classe média que conhecemos, naquele tempo as ruas ainda eram em sua maioria de terra e os grandes terrenos de fazendas e chácaras dividiam espaço com as casas humildes que existiam ali, quem passa pela Lomas hoje ainda consegue ver uma ou duas casas dessa época, resistindo ao tempo e as convicções do progresso.
Foi nesta casa de madeira que eu me criei e sonhei alguns dos os meus sonhos de criança, foi nessa casa torta, com assoalho alto de madeira pra não alagar que eu brinquei a mais inocente das fases, foi nessa casa com cozinha de terra batida e seu jirau poeticamente emoldurando dando a vista pro quintal que eu convivi com as durezas de uma vida pobre e encarei aquilo como cotidiano, um divertido cotidiano. Foi ali, com a tv, os brinquedos e as revistas em quadrinhos e um quintal grande com um balanço em um jambeiro que a minha infância foi feliz.
Nesta casa eu convivi com meus pais, meus irmãos e, vez ou outra a minha vó, três cômodos para cinco ou seis pessoas. Era tudo o que a gente tinha, a casa, uma tv e uns aos outros. Meu pai trabalhava de vendedor ambulante, minha mãe era empregada doméstica, minha vó costureira, meus irmãos eram mais velhos que eu, 14 e 13 anos mais velhos, em 1989 eles estavam com 22 e 21 anos. Foram pouquíssimos os momentos que convivemos os irmãos todos juntos na mesma casa, minha vó se mudou para a casa da minha tia no então distante Distrito Industrial em Ananindeua e logo em seguida meu irmão mais velho também foi morar pra lá. Éramos pobres, a condição lá parecia ser um pouco melhor, mas acho que o principal motivo desta decisão foi a revolta que incomodava meu irmão por toda aquela situação de pobreza que a gente estava inserido. E minha tia era professora de português e na casa dela havia livros e meu irmão foi atrás dos livros para esquecer um pouco sua condição socioeconômica que a gente enfrentava.
Então basicamente ficamos meus pais, meu irmão do meio e eu na casa, salvo as esporádicas visitas de finais de semana do meu irmão e da minha vó. Diferente de todos os meus primos com quem tive contato eu era a única criança sozinha, todos os outros tinham irmãos na mesma faixa etária com quem podiam, brincar discutir, fazer birra, brigar ou falar de suas descobertas, eu não tinha ninguém. Meus irmãos, por serem mais velhos, já era um outro processo de criação e relacionamento. Esse fato me levou a exercitar muito mais a imaginação e a criar minhas próprias histórias e a me divertir sozinho na maior parte do tempo. A imaginação era outra forte aliada naquele contexto de enxergar a beleza em toda a probreza que me rodeava.
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(Na casa velha, com a tv que foi roubada e o armário que foi trocado pelo novo depois do roubo da tv. A parede de tijolos era da casa do vizinho e ainda temos esse sofá em casa, mas reformado, é claro)

Meu irmão que foi morar em Ananindeua sempre foi o mais radical, impaciente e agressivo com as futilidades e banalidades da vida. Mau humorado ao extremo e bastante recluso. O irmão que ficou em casa era o amigo da galera, todo mundo na rua gostava do cara, ia para as festas com os amigos, brincava com todo mundo, tinha as namoradinhas espalhadas pelo bairro, alegrava sempre que chegava. Era dono de um majestoso black power e tinha uma voz forte que a gente ouvia longe. Apesar dessas divergências, ambos se davam muito bem. Em uma situação de extrema pobreza a gente imagina que os jovens vão cair por um caminho de criminalidade ou, no mínimo, seguir por uma vida cotidiana e rotineira de ir trabalho e voltar pra casa, já que a perspectiva de terminar estudos não muito presente. Mas curiosamente meus irmãos não foram por esse caminho, eles foram por um caminho das artes, da leitura, dos quadrinhos da música, Lembro ainda deles bolando as ideias dos primeiros fanzines que fizeram, lembro de olhar esse material impressionado com toda aquela potência, mesmo sem entender nada daquilo, a beleza visual era impressionante e diferente. E tinham sido os meus irmãos a produzir tudo aqui, era fantástico.
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(Meu irmão, acho que uns 15 anos, não sei se sou eu nessa foto)

Tínhamos uma televisão comprada as duras penas por meu pai naquela época, essa era o nosso maior patrimônio. Ocupava o centro da sala como se fosse um altar, posteriormente estudando audiovisual fui entender o que motivou a substituição do oratório com seus muitos santos pela televisão na cultura ocidental moderna, mas aquela época, claro, não dava a mínima, só queria assistir os desenhos e séries na querida televisão. Posteriormente essa televisão foi roubada e ficamos alguns meses sem tv até que o meu pai conseguiu comprar uma nova, para a alegria de todos na casa. Não tínhamos rádio, ou aparelhos de som, não havia dinheiro para isso. Não havia dinheiro para muita coisa na verdade, só deu pra comprar uma televisão e uma estante pra colocar a televisão no meio da sala.

(O que restou da nossa estante onde ficava a televisão)

Nós não tínhamos um aparelho de som em casa, mas meu irmão era fanático por música. Mesmo sem termos como comprar um popular 3x1 ou um simples toca-fitas, ele ainda sim comprava os K7’s das bandas que ele gostava pra ouvir junto com os amigos, ou quando podia levava um rádio toca-fitas emprestado pra casa pra ouvir suas músicas. Era a época do rock nacional e ali as grandes memórias afetivas com esse estilo musical começam a se cristalizar na minha mente, a dificuldade pra poder ouvir uma música que a gente gosta permeou a minha vida. Lembro das horas gastas sentado na janela, olhando a rua com seu ritmo infinitamente menos frenético ao que é hoje (as janelas de madeira não tinham grades, imaginem) e meu irmão deitado em um sofá, com um rádio emprestado ouvindo suas fitas. Mesmo hoje com a facilidade do spotify, ter um disco físico ou um aparelho de som ainda é algo bem difícil por aqui.
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(Não importava as madeiras mal distribuídas ou se as condições eram insalubres, ali eu fui feliz)

E foi nessa sala com suas paredes de madeira, com seu chão de madeira alta para evitar alagamentos e com seu telhado alto, seguro por apenas uma ripa de madeira toda comida de cupim, que um dia eu estava brincando e meu irmão me chamou.
- Márcio, vem cá!
- Oi
- Conheces esse símbolo? (me mostra uma revista com um símbolo)
- É o da tua camisa?
- Isso, agora olha aqui
Era o Quatro Estações da Legião Urbana, disco que havia sido lançado há pouco tempo e cuja a capa tem o famoso símbolo do violão. Meu irmão tinha uma camisa branca da Legião Urbana com este mesmo símbolo em dourado bem grande. Ele era um cara alto com seus 1,80 metros ou mais e o símbolo brilhava quando ele vestia aquela camisa. Ele era muito conhecido na vizinhança por seu gosto musical e por sua paixão pela banda de Brasília. Ele era do fã-clube da Legião Urbana, é quase um absurdo hoje pensar que um jovem de 21 anos de uma periferia faça parte de algum fã-clube de qualquer coisa, mas naquela época, sem internet e com a abertura política ao poucos liberando o acesso à informação, um fã-clube e seus fanzines era o máximo que alguém tinha pra se informar fora do grande esquema midiático.
Segue o diálogo:
- Agora olha essas músicas aqui
- Olha, tem uma música com teu nome
- É um dia, quem sabe a gente não consegue ouvir ela aqui em casa?
Essa é uma das minhas lembranças mais cristalinas da infância, a primeira vez que eu vi como aquela banda era importante pro meu irmão e como tudo aquilo ali tinha um sentido muito maior. Não era apenas gostar de uma música, era querer fazer parte de tudo da maneira mais intensa possível. Era encontra ali uma saída maior para toda aquela vida miserável que se levava debaixo daquele barraco de madeira e do futuro sem perspectivas que era oferecido. Ali existia uma verdade que igualava muitas pessoas em locais muitos distantes e com experiências e dilemas muitos particulares a viver intensamente aquele momento. Logo em seguida ele guardou suas coisas na estante, pegou seu fanzine e foi ler, eu fui brincar e a vida seguiu, como se ali houvesse ocorrido uma ruptura, nunca mais as coisas seriam para sempre.

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(Não precisava de muito pra ser feliz)

 Em 1992 nós já não morávamos mais em uma casa de madeira. Meu pai, que tinha sérios problemas com a bebida parou de beber juntou dinheiro, comprou aquela casa de madeira e começou a construir sua casa de alvenaria. Em 1992 a Lomas e o bairro do Marco já não tinham tantas ruas de terra e as fazendas e chácaras já começavam a desaparecer e a dar lugar a prédios e as lojas e comércios. Em agosto de 1992 meu irmão saiu para se divertir com amigos, saiu para aproveitar sua juventude e nunca mais voltou, ainda lembro com todas as cores e evidências a última vez que o vi. Aquele foi o meu primeiro contato mais íntimo com a morte, aquele foi um episódio que traumatizou a família toda por longos anos. Como alguém tão cheio de vida pode morrer assim? A morte machucou profundamente, mas também foi ali que eu passei a acreditar que aquelas músicas, aqueles fanzines, aqueles símbolos, aquela agressiva realidade a qual passamos juntos lá atrás não poderia ser esquecida ou simplesmente ignorada, era a arte que iria manter essas memórias vivas, da mesma forma que ela o manteve seguro de si naqueles anos difíceis. Aquela música que o identificava tanto por onde quer que ele fosse com sua camisa marcante deveria se o mínimo de legado deixado, pois, mesmo eu sendo descrente de tudo, quando a morte vem a gente tende a pensar que nada pode ser em vão.
Em 1996 eu tinha 15 anos quando Renato Russo se também se foi e a inocência e a felicidade da infância já tinham ficado para traz e a raiva, o tédio e sensação de não pertencer aquela coisa colorida e alegre que foram os anos 90 já eram evidentes. Hoje, meu irmão teria seus 52 anos, não sei que caminhos eu teria tomado se ele ainda estivesse aqui, mas tendo se passado 31 anos que eu entendi que o símbolo naquela fita significava para ele, e o que significa pra mim depois de tanto tempo, eu continuo a acreditar que tudo isso nos ajuda a encontrar um caminho diante de toda essa pobreza e essa tristeza que está ai.
Já não sei dizer o que aconteceu
Se tudo que sonhei foi mesmo um
sonho meu
Se meu desejo então já se realizou
O que fazer depois
Pra onde é que eu vou?



quinta-feira, 26 de março de 2020

Utopia x Distopia


Quando a gente pensa em distopias a gente pensa em mundos pós apocalípticos ou em mundos completamente totalitários com governos e empresas tecnológicas dominando tudo. Quando a gente pensa em distopias a gente olha pra nós mesmo e pra nossa condição e pensa: “tá bom assim do jeito que tá”, mesmo sabendo que não tá nada bom. É provável que as pessoas procurem na distopia uma paz de espirito que não exista naquele momento em suas vidas.  É provável que as pessoas não entendam que a distopia é mais realidade que ficção.

Tecnologicamente já somos todos controlados, celulares, computadores, contas de email, acesso remoto, cartão de crédito, App de rastreamento, tá tudo aí e a gente convive muito tranquilamente com tudo isso, uns mais e outros menos. Uma parcela da população não tem nada disso e segue alheio as imposições que são feitas diariamente para que se esteja conectado 24 horas por dia, mas bem, independente da pandemia que nos assola hoje, esses também não viveram para sempre e as novas gerações que virão terão internalizado que “Ser tecnologia” é praticamente a mesma coisa que existir. Grandes distopias como as de Issac Assimov nos apresentam esse mundo em que a tecnologia é praticamente o próprio existir, existiria algo para além disso?

E nas questões políticas, grandes obras falam em mundos destruídos, ou com poder completamente centralizado. O que vemos hoje são políticos ou seus partidos por 10, 15, 20 anos no poder. Não é aquela ditadura distópica a que estamos acostumados e ler em livros ou ver em filmes, mas aquela imagem de totalitarismo nazista dos uniformes e bandeiras ou do Mad Max ou Tank Girl em que as cidades vão sumindo e tudo vai se tornando cada vez mais hostil parece bem longe de acontecer. O medo da ciência está aí, queimar livros não tem sido uma realidade tão distante e o Fahrenheit é bem palpável. A religião evangélica e as Jihads nos colocam diante de mundos totalitários muitos assustadores.

E seguem outros modelos, distopias climáticas, distopias pandêmicas (como a atual), distopias psicológicas, distopias étnicas e raciais, distopias temporais, distopias econômicas, são várias possibilidades, todas provém do estado atual de utopia em que nos encontramos e a transformação nunca é sentida a curto e médio prazo. Qual a maior distopia em uma sociedade capitalista e de consumos? Não existir mais consumo? Não existir mais quem explorar? E quando não existir mais o que explorar, qual será a nova utopia? Socialismo utópico? Anarquismo? E se pensarmos em distopias de extermínio da humanidade, em que pequenos grupos se mantém vivos para repovoar a terra (de novo, Mad Max e Tank Girl), que valores de hoje essas pessoas carregariam consigo para essa nova sociedade distópica, afinal, os macacos de o Planeta dos Macacos sofrem dos mesmos vícios que os seres humanos atuais e a sua distopia é mais espelho que ruptura. A distopia faz parte da utopia e não está desvinculada desta, mas o que é utópico pra um pode parecer muito distópico para outros.

São tempos de transformações profundas, a distopia é a forma que a filosofia e arte encontraram para fazer previsões do nosso futuro e assim olhar para nós mesmos. Do Jardim do Éden a Black Mirror passando pela República de Platão ou o Inferno de Dante, utopia e distopia estão ali, mas seria a utopia o futuro? Se a utopia é o lugar ideal que não é o agora, qual seria esse lugar? O passado? Quem garante que o passado foi melhor? E se a Utopia não é o agora, a distopia seria esse presente constante em que vivemos ou essa infindável busca pelo passado? Somos seres distópicos por natureza? Ou a maior distopia seria esse individualismo latente e o fim da busca por progresso e de novas utopias? O tempo é esse arcabouço das histórias, sejam elas reais ou ficcionais. Chegamos no limite? Queremos voltar, ignorar ou esquecer tudo isso que está ai?

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Vertigem democrática


Tenho lido as críticas da direita desmerecendo o filme por que, segundo eles, a narrativa mostra que a democracia começou quando o Lula ganhou a eleição de 2002 e terminou quando tiraram a Dilma, isso tudo seria motivado por grande fator tendencioso pró Lula que o filme quer passar. Provavelmente a raiva antipetista que cegou as pessoas recentemente as faça ter essa visão estreita, mas vamos lá, isso aqui é cinema e não política.

A diretora Petra Costa explora de forma muito coerente no documentário o tema da democracia brasileira e a sua construção após a ditadura militar, inclusive misturando a sua vida ao tema em questão. A atual democracia da seus primeiros passos em 1985 com a abertura política e inicia efetivamente com as eleições de 1989 sobre a égide da nova constituição, nesse ínterim a diretora foi sucinta, não entrou em detalhes sobre os eventos que levaram até 1989 como os debates sobre a constituição e como os arranjos políticos se deram, pra uns isso é relevante e daria mais conteúdo ao filme, pra diretora esse não é o momento que a democracia começa ruir e por isso não tiveram o maior destaque no filme.

Vem as eleições de 89, 94 e 98 perdidas pelo Lula que também não são aprofundadas na narrativa por que, simbolicamente e implicitamente, pra diretora ali a democracia estava funcionando. Lula se candidatou, perdeu o pleito e aceitou a derrota, aceitou democraticamente o resultado das urnas e foi trabalhar para conseguir ser eleito. E é nesse trabalho que ela foca quando diz que o Lula era um personagem que se colocava na ala mais radical e com o tempo foi revendo suas convicções e fazendo novas parcerias e contatos e entendendo que a democracia é diálogo. 2002 se torna um marco com a eleição de Lula por que, depois da ditadura militar um sindicalista chegava ao poder de forma democrática, e isso numa democracia jovem é algo a ser louvado.

A diretora não é isenta da realidade, ela fala do esquema do mensalão, critica as parcerias com o PMDB, fala da descoberta do pré-sal, fala das empreiteiras e aqui também mistura a vida de sua família ao que acontece com a democracia Brasileira. Fala dos prós e contras do governo do Lula e posteriormente do governo Dilma, mostra as vozes de quem concorda e de quem discorda da política feita pelo Lula e Dilma e são essas vozes em contraponto que é exemplifica o que é democracia pra diretora, elas estão o tempo todo ali no filme.

A sequência dos fatos chega até a segunda eleição de Dilma quando Aécio não aceita o resultado do pleito e começa a lutar para desestabilizar o governo, segue os protestos de 2013, inicia e cresce o antipestismo com apoio da mídia e a ascensão das mídias sociais, a lava jato e sua parcialidade aparece, acordos nacionais, surge Bolsonaro que exalta aquilo que a democracia queria deixar pra traz, a ditadura militar. Mas como diz a diretora no filme, é uma democracia fundada no esquecimento.

Vem o impeachment, vem a casa do povo cheia de vícios tendo Cunha como exemplo sendo preso, vem a extrema direita ávida por poder ocupando os salões que antes eles tinham que pedir permissão pra entrar, sai o povo e entra o fazendeiro, o miliciano, o pastor, o rico. Vem o julgamento e a prisão política de Lula até que chega ao poder aquilo que achávamos ter deixado pra traz lá em 1985. A questão segue sendo sempre, onde foi que a nossa democracia vergou? Até onde ela pode vergar e continuar sendo chamada de democracia?

Para algumas pessoas talvez faltem fatos relevantes da história brasileira, mas percebam que a questão aqui não é política, a questão proposta pela diretora não é esmiuçar essa história, mas mostrar como a frágil democracia brasileira é em si própria tão frágil por diversos motivos e como isso é assustador. A licença poética com que ela mistura sua vida e de seus familiares a da democracia brasileira é o que faz a narrativa ganhar o fluxo que tem, isso misturado com as cenas de arquivo e no cerne dos eventos atuais aos quais a diretora se dispões a discutir. Isso é lindo, isso é a poesia, isso é o cinema documentário maravilhosamente lapidado na ilha de edição depois de horas de decupagem para criar uma narrativa que sustente o questionamento.

E como toda obra artística ela é passível de críticas e contragosto, e nós do cinema até esperamos essa crítica bem construída que nos tire do nosso lugar comum, mas por enquanto o que vemos é apenas a mesma raiva antipetista que nos jogou nessa horrível vertigem democrática e isso só reforça tudo o que está ali na tela. 



Trailer de Democracia em Vertigem de Petra Costa

quinta-feira, 19 de abril de 2018

"CYBERDINGO - por Carlos Eduardo Miranda

O Clássico texto sobre a tese dos Cyberdingos do Carlos Eduardo Miranda. O Texto foi publicado em 1994 na também famosa revista General, e eu tive acesso pelo zine Scream & Yell no final dos anos 90, o Marcelo Costa subiu as edições do zine no site e, trocando uma ideia com elei no twitter eu consegui reler o texto. Como não encontrei o texto em lugar nenhum da internet e por achar que se trata de uma verdadeira pérola do jornalismo underground do Brasil, coloco aqui para a galera conhecer ou reler.
"CYBERDINGO - por Carlos Eduardo Miranda
Chinelo é a puta que o pariu! Outro dia o Humberto Gessinger e o Carlos Maltz, aqueles engenheiros, falaram para o brod Alex Antunes que eu era o príncipe da chinelagem. Falaram também que o Alex era um tremendo chinelo. Explico. Chinelo, em bom gauchês, é o sujeito largadão que sabe se dar bem, que tira leite de pedra.
Fiquei orgulhoso com a consideração dos conterrâneos, mas encanei com a especificidade do termo.
Ai fica todo mundo falando nessa besteira de nerd de cyberpunk, que não passa de ficção científica casca grossa. Os Ratos de Porão, o Sepultura... viviam todos falando que não sei quem era o maior "dingo" - uma abreviatura útil e bacana de mendigo.
Juntei a goiabada com o queijo (nunca comi essa porra de Romeu & Julieta) e cheguei à conclusão: chinelo porra nenhuma, eu sou é cyberdingo.
Muito mais jóia. Nomezinho todo bacana. Meio gringo, meio brazuca. Perfeito!
E não sou só eu. Tem uma porrada de cyberdingos espalhados por ai.
"Mas e ai velhinho, que negócio é esse de cyberdingo?"
É o seguinte. O cara anda sempre esculhambado, de chinelo (olha ele ai), tênis velho, bermuda, camiseta de restaurante (ou qualquer coisa que o valha), uns jeans bem chumbados... mas não é grunge, note-se bem.
Quer dizer, não precisa obrigatoriamente gostar daquela curumela de Seatle, nem usar barba de bode e esses quetais todos.
Até ai é fácil ser cyberdingo. O negócio aperta no próximo requisito:
O malandro precisa saber se dar bem. Ter alguma relação cibernértica com alguma realidade que o cerque.
Pode morar num lugar todo escangalhado, mas tem que ser bem localizado. Não precisa ter um enfeite, que seja. Nem sofá, mesa, abajur e essas viadagens todas. Um colchão, um fogão e um refrigerador (ou quase isso) já basta de infra.
Agora, tem o principal que é estar bem munido de um equipamento de som, TV, videocassete, vídeo-game e montanhas de discos, CDs, revistas, livros, vídeos estranhos...
Um computadorzinho também vai bem. Pra quê? Pra ficar informado, ô mané! "Dingo" sem informação não é "Cyber".
Cyberdingo também come qualquer croquete de boteco, entretanto tem a manha da boa cozinha. Janta em restaurante classe A pelo menos uma vez por quinzena. No começo até dá umas "gafes", no item boas maneiras, mas bom observador que é, com o tempo pega as manhas. Sem deixar soltar um arroto quando lhe convir.
Cyberdingo viaja até de mula. Isso quando não está bem descolado em um avião. Transporte que utiliza sem nenhuma cerimônia.
Uma vez, voltando de Recife, fui recolhido direto da piscina do hotel para o aeroporto e cometi a asneira e, além trajar os habituais chinelos, estar de calção. Molhado. Quase congelei no ar-condicionado e nunca mais repito a besteira. Como disse, o cara vacila, mas pega as manhas.
Cyberdingo também não paga pra entrar em show, é convidado para todas as festas e, mesmo que não queira, acaba saindo vez ou outra na coluna social.
Ainda conhece pelo nome toda a vizinhança - estratégia social mais do que recomendável para maluco que quer ser respeitado no pedaço - e consegue pindura em qualquer boteco da região.
Sem contar que odeia documentos, honra sempre suas dívidas, vai em reunião de bacanas todo esculhambado - e ainda assim é respeitado - e descola cheque especial no banco e cartão de crédito.
Pra fechar, a cyber-regra-dingo-básica n° 1: "Nunca mendigar, sempre se descolar" Experimente.
Exemplos? Max e Igor Cavalera, João Gordo, Al Jourgensen e Paul Baker, a galera do Yo-Ho-Delic, o brod Scowa, Mike Patton. O video-maker Eduardo Xocante, os Red Hot Chilli Peppers, o Alex Antunes, Calvin (so what), André e Cherry (Okotó), Júlio (MTv), Ivan David e Beto Guimarães (Psycho Drops), Jello Biafra e Chico Science, o De Falla inteiro, Alex Newport, Carlo Pianta, (Graforreia Xilarmonica), Chris Skepis (Pit Bulls on Crack), eu mesmo, a Tati e mais um trilhão de doidos espalhados pelo mundo."