“Me sinto tão só
1989,
eu tinha 8 anos e morava em uma casa de madeira na então periferia da Lomas,
número 1839 entre Duque de 25 de setembro no bairro do Marco. Por mais que hoje
o Marco seja esse bairro classe média que conhecemos, naquele tempo as ruas
ainda eram em sua maioria de terra e os grandes terrenos de fazendas e chácaras
dividiam espaço com as casas humildes que existiam ali, quem passa pela Lomas
hoje ainda consegue ver uma ou duas casas dessa época, resistindo ao tempo e as
convicções do progresso.
Foi
nesta casa de madeira que eu me criei e sonhei alguns dos os meus sonhos de
criança, foi nessa casa torta, com assoalho alto de madeira pra não alagar que
eu brinquei a mais inocente das fases, foi nessa casa com cozinha de terra
batida e seu jirau poeticamente emoldurando dando a vista pro quintal que eu
convivi com as durezas de uma vida pobre e encarei aquilo como cotidiano, um
divertido cotidiano. Foi ali, com a tv, os brinquedos e as revistas em
quadrinhos e um quintal grande com um balanço em um jambeiro que a minha infância
foi feliz.
Nesta
casa eu convivi com meus pais, meus irmãos e, vez ou outra a minha vó, três
cômodos para cinco ou seis pessoas. Era tudo o que a gente tinha, a casa, uma
tv e uns aos outros. Meu pai trabalhava de vendedor ambulante, minha mãe era
empregada doméstica, minha vó costureira, meus irmãos eram mais velhos que eu,
14 e 13 anos mais velhos, em 1989 eles estavam com 22 e 21 anos. Foram pouquíssimos
os momentos que convivemos os irmãos todos juntos na mesma casa, minha vó se
mudou para a casa da minha tia no então distante Distrito Industrial em
Ananindeua e logo em seguida meu irmão mais velho também foi morar pra lá. Éramos
pobres, a condição lá parecia ser um pouco melhor, mas acho que o principal
motivo desta decisão foi a revolta que incomodava meu irmão por toda aquela
situação de pobreza que a gente estava inserido. E minha tia era professora de
português e na casa dela havia livros e meu irmão foi atrás dos livros para
esquecer um pouco sua condição socioeconômica que a gente enfrentava.
Então
basicamente ficamos meus pais, meu irmão do meio e eu na casa, salvo as
esporádicas visitas de finais de semana do meu irmão e da minha vó. Diferente
de todos os meus primos com quem tive contato eu era a única criança sozinha,
todos os outros tinham irmãos na mesma faixa etária com quem podiam, brincar
discutir, fazer birra, brigar ou falar de suas descobertas, eu não tinha
ninguém. Meus irmãos, por serem mais velhos, já era um outro processo de
criação e relacionamento. Esse fato me levou a exercitar muito mais a
imaginação e a criar minhas próprias histórias e a me divertir sozinho na maior
parte do tempo. A imaginação era outra forte aliada naquele contexto de
enxergar a beleza em toda a probreza que me rodeava.
(Na casa velha, com a tv que foi roubada e o armário que foi trocado pelo novo depois do roubo da tv. A parede de tijolos era da casa do vizinho e ainda temos esse sofá em casa, mas reformado, é claro)
Meu
irmão que foi morar em Ananindeua sempre foi o mais radical, impaciente e
agressivo com as futilidades e banalidades da vida. Mau humorado ao extremo e
bastante recluso. O irmão que ficou em casa era o amigo da galera, todo mundo
na rua gostava do cara, ia para as festas com os amigos, brincava com todo
mundo, tinha as namoradinhas espalhadas pelo bairro, alegrava sempre que
chegava. Era dono de um majestoso black power e tinha uma voz forte que a gente
ouvia longe. Apesar dessas divergências, ambos se davam muito bem. Em uma
situação de extrema pobreza a gente imagina que os jovens vão cair por um
caminho de criminalidade ou, no mínimo, seguir por uma vida cotidiana e
rotineira de ir trabalho e voltar pra casa, já que a perspectiva de terminar
estudos não muito presente. Mas curiosamente meus irmãos não foram por esse
caminho, eles foram por um caminho das artes, da leitura, dos quadrinhos da
música, Lembro ainda deles bolando as ideias dos primeiros fanzines que fizeram,
lembro de olhar esse material impressionado com toda aquela potência, mesmo sem
entender nada daquilo, a beleza visual era impressionante e diferente. E tinham
sido os meus irmãos a produzir tudo aqui, era fantástico.
(Meu irmão, acho que uns 15 anos, não sei se sou eu nessa foto)
Tínhamos
uma televisão comprada as duras penas por meu pai naquela época, essa era o
nosso maior patrimônio. Ocupava o centro da sala como se fosse um altar,
posteriormente estudando audiovisual fui entender o que motivou a substituição do
oratório com seus muitos santos pela televisão na cultura ocidental moderna,
mas aquela época, claro, não dava a mínima, só queria assistir os desenhos e
séries na querida televisão. Posteriormente essa televisão foi roubada e
ficamos alguns meses sem tv até que o meu pai conseguiu comprar uma nova, para
a alegria de todos na casa. Não tínhamos rádio, ou aparelhos de som, não havia
dinheiro para isso. Não havia dinheiro para muita coisa na verdade, só deu pra
comprar uma televisão e uma estante pra colocar a televisão no meio da sala.
Nós
não tínhamos um aparelho de som em casa, mas meu irmão era fanático por música.
Mesmo sem termos como comprar um popular 3x1 ou um simples toca-fitas, ele
ainda sim comprava os K7’s das bandas que ele gostava pra ouvir junto com os
amigos, ou quando podia levava um rádio toca-fitas emprestado pra casa pra
ouvir suas músicas. Era a época do rock nacional e ali as grandes memórias
afetivas com esse estilo musical começam a se cristalizar na minha mente, a
dificuldade pra poder ouvir uma música que a gente gosta permeou a minha vida. Lembro
das horas gastas sentado na janela, olhando a rua com seu ritmo infinitamente
menos frenético ao que é hoje (as janelas de madeira não tinham grades,
imaginem) e meu irmão deitado em um sofá, com um rádio emprestado ouvindo suas
fitas. Mesmo hoje com a facilidade do spotify, ter um disco físico ou um
aparelho de som ainda é algo bem difícil por aqui.
(Não importava as madeiras mal distribuídas ou se as condições eram insalubres, ali eu fui feliz)
E
foi nessa sala com suas paredes de madeira, com seu chão de madeira alta para
evitar alagamentos e com seu telhado alto, seguro por apenas uma ripa de
madeira toda comida de cupim, que um dia eu estava brincando e meu irmão me
chamou.
-
Márcio, vem cá!
-
Oi
-
Conheces esse símbolo? (me mostra uma revista com um símbolo)
-
É o da tua camisa?
-
Isso, agora olha aqui
Era
o Quatro Estações da Legião Urbana, disco que havia sido lançado há pouco tempo
e cuja a capa tem o famoso símbolo do violão. Meu irmão tinha uma camisa branca
da Legião Urbana com este mesmo símbolo em dourado bem grande. Ele era um cara
alto com seus 1,80 metros ou mais e o símbolo brilhava quando ele vestia aquela
camisa. Ele era muito conhecido na vizinhança por seu gosto musical e por sua paixão
pela banda de Brasília. Ele era do fã-clube da Legião Urbana, é quase um
absurdo hoje pensar que um jovem de 21 anos de uma periferia faça parte de
algum fã-clube de qualquer coisa, mas naquela época, sem internet e com a
abertura política ao poucos liberando o acesso à informação, um fã-clube e seus
fanzines era o máximo que alguém tinha pra se informar fora do grande esquema
midiático.
Segue
o diálogo:
-
Agora olha essas músicas aqui
-
Olha, tem uma música com teu nome
-
É um dia, quem sabe a gente não consegue ouvir ela aqui em casa?
Essa
é uma das minhas lembranças mais cristalinas da infância, a primeira vez que eu
vi como aquela banda era importante pro meu irmão e como tudo aquilo ali tinha
um sentido muito maior. Não era apenas gostar de uma música, era querer fazer
parte de tudo da maneira mais intensa possível. Era encontra ali uma saída maior
para toda aquela vida miserável que se levava debaixo daquele barraco de
madeira e do futuro sem perspectivas que era oferecido. Ali existia uma verdade
que igualava muitas pessoas em locais muitos distantes e com experiências e
dilemas muitos particulares a viver intensamente aquele momento. Logo em
seguida ele guardou suas coisas na estante, pegou seu fanzine e foi ler, eu fui
brincar e a vida seguiu, como se ali houvesse ocorrido uma ruptura, nunca mais
as coisas seriam para sempre.

(Não precisava de muito pra ser feliz)
Em 1992 nós já não morávamos mais em uma casa
de madeira. Meu pai, que tinha sérios problemas com a bebida parou de beber
juntou dinheiro, comprou aquela casa de madeira e começou a construir sua casa
de alvenaria. Em 1992 a Lomas e o bairro do Marco já não tinham tantas ruas de
terra e as fazendas e chácaras já começavam a desaparecer e a dar lugar a
prédios e as lojas e comércios. Em agosto de 1992 meu irmão saiu para se
divertir com amigos, saiu para aproveitar sua juventude e nunca mais voltou,
ainda lembro com todas as cores e evidências a última vez que o vi. Aquele foi
o meu primeiro contato mais íntimo com a morte, aquele foi um episódio que
traumatizou a família toda por longos anos. Como alguém tão cheio de vida pode
morrer assim? A morte machucou profundamente, mas também foi ali que eu passei
a acreditar que aquelas músicas, aqueles fanzines, aqueles símbolos, aquela agressiva
realidade a qual passamos juntos lá atrás não poderia ser esquecida ou simplesmente
ignorada, era a arte que iria manter essas memórias vivas, da mesma forma que
ela o manteve seguro de si naqueles anos difíceis. Aquela música que o
identificava tanto por onde quer que ele fosse com sua camisa marcante deveria
se o mínimo de legado deixado, pois, mesmo eu sendo descrente de tudo, quando a
morte vem a gente tende a pensar que nada pode ser em vão.
Em
1996 eu tinha 15 anos quando Renato Russo se também se foi e a inocência e a felicidade
da infância já tinham ficado para traz e a raiva, o tédio e sensação de não
pertencer aquela coisa colorida e alegre que foram os anos 90 já eram
evidentes. Hoje, meu irmão teria seus 52 anos, não sei que caminhos eu teria
tomado se ele ainda estivesse aqui, mas tendo se passado 31 anos que eu entendi
que o símbolo naquela fita significava para ele, e o que significa pra mim
depois de tanto tempo, eu continuo a acreditar que tudo isso nos ajuda a
encontrar um caminho diante de toda essa pobreza e essa tristeza que está ai.
Já não sei dizer o que aconteceu
Se tudo que sonhei foi mesmo um
sonho meu
Se meu desejo então já se realizou
O que fazer depois
Pra onde é que eu vou?





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