segunda-feira, 24 de junho de 2019

Vertigem democrática


Tenho lido as críticas da direita desmerecendo o filme por que, segundo eles, a narrativa mostra que a democracia começou quando o Lula ganhou a eleição de 2002 e terminou quando tiraram a Dilma, isso tudo seria motivado por grande fator tendencioso pró Lula que o filme quer passar. Provavelmente a raiva antipetista que cegou as pessoas recentemente as faça ter essa visão estreita, mas vamos lá, isso aqui é cinema e não política.

A diretora Petra Costa explora de forma muito coerente no documentário o tema da democracia brasileira e a sua construção após a ditadura militar, inclusive misturando a sua vida ao tema em questão. A atual democracia da seus primeiros passos em 1985 com a abertura política e inicia efetivamente com as eleições de 1989 sobre a égide da nova constituição, nesse ínterim a diretora foi sucinta, não entrou em detalhes sobre os eventos que levaram até 1989 como os debates sobre a constituição e como os arranjos políticos se deram, pra uns isso é relevante e daria mais conteúdo ao filme, pra diretora esse não é o momento que a democracia começa ruir e por isso não tiveram o maior destaque no filme.

Vem as eleições de 89, 94 e 98 perdidas pelo Lula que também não são aprofundadas na narrativa por que, simbolicamente e implicitamente, pra diretora ali a democracia estava funcionando. Lula se candidatou, perdeu o pleito e aceitou a derrota, aceitou democraticamente o resultado das urnas e foi trabalhar para conseguir ser eleito. E é nesse trabalho que ela foca quando diz que o Lula era um personagem que se colocava na ala mais radical e com o tempo foi revendo suas convicções e fazendo novas parcerias e contatos e entendendo que a democracia é diálogo. 2002 se torna um marco com a eleição de Lula por que, depois da ditadura militar um sindicalista chegava ao poder de forma democrática, e isso numa democracia jovem é algo a ser louvado.

A diretora não é isenta da realidade, ela fala do esquema do mensalão, critica as parcerias com o PMDB, fala da descoberta do pré-sal, fala das empreiteiras e aqui também mistura a vida de sua família ao que acontece com a democracia Brasileira. Fala dos prós e contras do governo do Lula e posteriormente do governo Dilma, mostra as vozes de quem concorda e de quem discorda da política feita pelo Lula e Dilma e são essas vozes em contraponto que é exemplifica o que é democracia pra diretora, elas estão o tempo todo ali no filme.

A sequência dos fatos chega até a segunda eleição de Dilma quando Aécio não aceita o resultado do pleito e começa a lutar para desestabilizar o governo, segue os protestos de 2013, inicia e cresce o antipestismo com apoio da mídia e a ascensão das mídias sociais, a lava jato e sua parcialidade aparece, acordos nacionais, surge Bolsonaro que exalta aquilo que a democracia queria deixar pra traz, a ditadura militar. Mas como diz a diretora no filme, é uma democracia fundada no esquecimento.

Vem o impeachment, vem a casa do povo cheia de vícios tendo Cunha como exemplo sendo preso, vem a extrema direita ávida por poder ocupando os salões que antes eles tinham que pedir permissão pra entrar, sai o povo e entra o fazendeiro, o miliciano, o pastor, o rico. Vem o julgamento e a prisão política de Lula até que chega ao poder aquilo que achávamos ter deixado pra traz lá em 1985. A questão segue sendo sempre, onde foi que a nossa democracia vergou? Até onde ela pode vergar e continuar sendo chamada de democracia?

Para algumas pessoas talvez faltem fatos relevantes da história brasileira, mas percebam que a questão aqui não é política, a questão proposta pela diretora não é esmiuçar essa história, mas mostrar como a frágil democracia brasileira é em si própria tão frágil por diversos motivos e como isso é assustador. A licença poética com que ela mistura sua vida e de seus familiares a da democracia brasileira é o que faz a narrativa ganhar o fluxo que tem, isso misturado com as cenas de arquivo e no cerne dos eventos atuais aos quais a diretora se dispões a discutir. Isso é lindo, isso é a poesia, isso é o cinema documentário maravilhosamente lapidado na ilha de edição depois de horas de decupagem para criar uma narrativa que sustente o questionamento.

E como toda obra artística ela é passível de críticas e contragosto, e nós do cinema até esperamos essa crítica bem construída que nos tire do nosso lugar comum, mas por enquanto o que vemos é apenas a mesma raiva antipetista que nos jogou nessa horrível vertigem democrática e isso só reforça tudo o que está ali na tela. 



Trailer de Democracia em Vertigem de Petra Costa

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